Condenar réu apenas com depoimento policial distorce o padrão de prova e a presunção de veracidade, ferindo o fluxo do processo penal.
A interpretação da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que autoriza a condenação do réu somente com base em depoimentos de policiais, levanta discussões sobre a garantia do devido processo legal e a imparcialidade das investigações. Essa medida pode resultar em injustiças e fragilizar a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos envolvidos no processo penal, gerando impactos negativos na credibilidade do sistema de justiça.
O entendimento consolidado no verbete da Súmula 70 do TJ-RJ, ao permitir a condenação sem a corroboração de outras provas, contraria princípios básicos de um Estado Democrático de Direito. É fundamental que a norma seja revista e adequada à garantia dos direitos individuais e à busca da justiça, evitando possíveis injustiças e violações dos direitos humanos. A revisão desse enunciado é necessária para aprimorar a segurança jurídica e promover um sistema criminal mais justo e equitativo.
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Súmula 70 e as Condenações baseadas em Depoimentos de Policiais no Rio
Depoimentos de policiais do Rio têm bastado para levar a condenações É o que afirmam Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Mariana de Assis Brasil e Weigert, professora de Criminologia do programa de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá.
Em parecer encomendado pelo Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, eles opinam pelo cancelamento da norma ou, em caso de sua manutenção, por uma mudança na redação, no sentido de que ‘é desautorizada a condenação baseada exclusivamente em depoimentos de autoridades policiais e seus agentes’.
Aprovada pelo Órgão Especial do TJ-RJ em 2003, a Súmula 70 tem a seguinte redação: ‘O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação’.
Carvalho e Mariana apontam que o depoimento policial é ‘um dos pilares de sustentação das sentenças criminais condenatórias, especialmente nos delitos patrimoniais e nos ilícitos relacionados com o Direito Penal das drogas’.
Presunção de regularidade A Súmula 70, destacam eles, baseia-se na presunção de regularidade da atividade policial e das suas manifestações nos procedimentos administrativos e judiciais apuratórios de crimes.
‘Em razão do cargo, os agentes do Estado estariam resguardados pela fé pública e os seus depoimentos somente poderiam ser refutados se apresentadas provas que evidenciassem má-fé.’ Porém, na América Latina, a regra é a violação, por ação ou omissão, da legalidade por parte de agentes dos sistemas punitivos, ressaltam os professores.
‘Em contextos de baixa densidade democrática, nos quais a atividade policial é marcada por situações não esporádicas de abuso de autoridade pelo uso desmedido da força (excesso de violência e letalidade) — como, infelizmente, é o caso do Rio de Janeiro —, entendemos ser impositivo e recomendável uma postura cética quanto à presunção de veracidade dos depoimentos policiais’, afirmam os docentes, citando que o Supremo Tribunal Federal ordenou na ADPF 635 que o governo do Rio elabore plano de redução da letalidade policial.
Eles mencionam como, em diversos casos, agentes de segurança produzem flagrantes para atingir metas de prisões e apreensões, para fazer retaliações ou proteger certas pessoas. Situações como essas, ponderam Carvalho e Mariana, ‘não podem ser simplesmente desconsideradas pelo Poder Judiciário quando, no processo penal, os depoimentos policiais são a única prova incriminadora’.
Ao mesmo tempo em que os depoimentos de policiais recebem credibilidade exagerada, os de acusados, especialmente negros e pobres, são desvalorizados, fazendo com que eles sofram ‘injustiça epistêmica’, avaliam os pareceristas.
A injustiça epistêmica ocorre quando um ouvinte, por preconceito, atribui a um falante um nível de credibilidade que não corresponde às evidências de que ele esteja falando a verdade, conforme conceito formulado pela filósofa Miranda Fricker.
Presunção de veracidade na Súmula 70
‘Da forma como foi absorvida pela magistratura fluminense, a Súmula 70 institucionaliza um modelo inquisitorial de prova tarifada ao transformar o depoimento policial (prova testemunhal) em prova plena’, dizem os professores. Eles afirmam que tais testemunhos devem ser examinados com prudência, porque agentes buscam justificar sua atuação profissional.
Além disso, os dois apontam que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se consolidando no sentido de exigir que a palavra do policial seja confirmada por provas independentes.
Perguntas e respostas Assim, os professores forneceram as seguintes respostas às perguntas da Defensoria: ‘a) Do ponto de vista empírico (criminológico), quais os efeitos concretos da aplicação da Súmula 70 no sistema de Justiça Criminal?
Resposta: A presunção de credibilidade dos depoimentos policiais, normatizada pela Súmula 70 do TJERJ, e a sua suficiência para formação do juízo condenatório geram consequências bastante nítidas no fluxo do processo penal (microanálise: endoprocessual): (primeira) desativa os filtros que garantiriam o controle da justa causa para a ação penal; (segunda) transforma a prova testemunhal no epicentro da cognição, em detrimento das provas técnicas e independentes; (terceira) incentiva a omissão do Ministério Público na produção de prova autônoma de qualidade; (quarta) …
Desafios da Súmula 70 no Sistema Legal Brasileiro
b) Do ponto de vista normativo (Direito Penal e Direito Processual Penal), a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro respeita os princípios constitucionais e a arquitetura legal do devido processo penal? Resposta: A premissa normativa que deve orientar o tema é a de que a única presunção constitucionalmente válida é a de inocência, disposta no art. 5º, LVII, da Constituição.
O estado de inocência fixa standards de prova elevados para garantir uma verdade fática de qualidade na afirmação da culpabilidade do réu. Diferente das demais áreas do Direito, o juízo condenatório criminal depende de uma precisão para além da dúvida razoável. Nesse sentido, a Súmula 70 do TJERJ (primeiro) viola o art.
5º, LVII, da Constituição, ao rebaixar o standard de prova exigido para condenação e não observar o requisito da suficiência (conjunto probatório robusto); (segundo) viola o art.
5º, LVII, da Constituição, ao permitir a antecipação do juízo de culpabilidade apresentado no relato policial, invertendo, pois, o ônus da prova; (terceiro) confunde a presunção de legalidade do ato…
c) Em caso de desrespeito às diretrizes constitucionais e legais, quais os critérios para revisão da Súmula se mantida sua vigência (não cancelamento)? Resposta: Em razão de sua desconformidade constitucional, o indicado seria o TJERJ cancelar a Súmula 70.
Em caso de manutenção da sua vigência, são relevantes as contribuições no sentido de exigir que os depoimentos policiais sejam corroborados com provas autônomas e independentes, como, p. ex., gravação audiovisual.
Todavia, em razão da tipicidade sempre aberta das estruturas normativas, inclusive das Súmulas, e da tendência atual de a interpretação judicial ser de restrição (e não de ampliação, como determina a Constituição) de direitos e garantias, entendemos ser fundamental uma mudança substancial na formação da linguagem dos enunciados.
Significa dizer que, desde uma perspectiva garantista, ao contrário de proposições que agreguem elementos para justificar o uso de provas que, por si só, seriam ilegítimas, é recomendada uma construção em sentido negativo, ou seja, que limite ou vede determinados elementos probatórios para condenação.
Nessa perspectiva, entendemos que uma revisão da Súmula 70 deva seguir esse método constritivo, de forma a consolidar taxativamente o valor constitucional que se pretende preservar, como, p. ex., uma redação clara no sentido de que ‘é desautorizada a condenação baseada exclusivamente em…
Pedido de Cancelamento da Súmula 70 pela Defensoria Pública
A Defensoria Pública do Rio pediu, em 2018, o cancelamento ou, subsidiariamente, a revisão da norma ao Centro de Estudos e Debates do TJ-RJ. O então defensor público-geral do Rio, André Luís Machado de Castro, citou a análise de 1.250 acórdãos publicados entre 2013 e 2016, feita pela Coordenação de Defesa Criminal do órgão.
O estudo apontou que magistrados vinham interpretando a Súmula 70 no sentido de presumir a veracidade dos depoimentos de policiais. O defensor público-geral destacou que a normativa não tinha sido seguida por outros Tribunais de Justiça. E ressaltou que a jurisprudência do STF…
Fonte: © Conjur
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